IMAGINÁRiO #480

José de Matos-Cruz | 24 Julho 2014 | Edição Kafre | Ano XI – Semanal – Fundado em 2004

PRONTUÁRiO

TRANSGRESSÕES

A fascinante incógnita, suscitada pela exploração do cosmo, constitui uma das facetas privilegiadas para o imaginário cinematográfico - por excelência, uma exortação do imaginário, que o prodígio dos efeitos especiais converte, cada vez mais, em deslumbramento para além do fantástico…

Em 2010, a espaçonave russa Leonov é lançada, para recolher todas as informações mantidas na correspondente americana Discovery, em órbita de Júpiter, desde que o astronauta David Bowman desapareceu, nove anos antes… Eis o tema de 2010 - O Ano do Contacto / The Year We Make Contact (1984), com realização de Peter Hyams; dando continuidade a 2001 / Odisseia No Espaço / A Space Odyssey (1968) de Stanley Kubrick - cedo convertido num clássico e em marco transfigurador, segundo o romanesco de Arthur C. Clarke. Ao retomar a saga, no suporte literário, o escritor tornou inevitável a correspondente projecção, em grande ecrã. Odisseia No Espaço transportava ao limiar de um território sagrado, cuja expectativa, ou apelo místico, O Ano do Contacto corrompe, numa sistemática explicitação lógica, em desmontagem dos mecanismos efabulativos.

CALENDÁRiO

29AGO2013 - ZON Audiovisuais estreia RPG - Real Playing Game de David Rebordão e Tino Navarro; com Rutger Hauer e Soraia Chaves. IMAG.327

04SET-19OUT2013 - No Teatro da Politécnica, em Lisboa, Artistas Unidos apresenta Sala Vip de Jorge Silva Melo; encenação de Pedro Gil, com Andreia Bento e Elmano SanchoIMAG.87-92-118-128-184-236-261-264-291-300-336-349-441-364

04SET-19OUT2013 - No Teatro da Politécnica, em Lisboa, Artistas Unidos apresenta Ficar de Pé, exposição de desenhos de Daniel Fernandes, Rafael Faria, João Gabriel Pereira e Catarina Lopes Vicente.

MEMÓRiA

1891-11JUL1974 - Pär Fabian Lagerkvist, aliás Pär Lagerkvist: Escritor sueco, distinguido com o Prémio Nobel da Literatura em 1951 - «Quem és tu, que preenches o meu coração com a tua ausência? Que preenches toda a terra com a tua ausência?».

24AGO1944-1989 - Paulo Leminski Filho, aliás Paulo Leminski: Poeta e ensaísta brasileiro - «Tudo é vago e muito vário / meu destino não tem siso, / o que eu quero não tem preço / ter um preço é necessário, / e nada disso é preciso.» (La Vie En Close).

30SET1924-25AGO1984 - Truman Streckfus Persons, aliás Truman Capote: Escritor americano - «A vida é uma peça de teatro razoavelmente boa, com um terceiro acto mal escrito». IMAG.60-64-84-172-210-230-281-297-414

1902-26AGO1974 - Charles Augustus Lindbergh, aliás Charles Lindbergh: Pioneiro norte-americano da aviação - «Aprendi que o perigo é relativamente pequeno, mas que a inexperiência pode funcionar como uma lupa». IMAG.130-357

28AGO1814-1873 - Joseph Thomas Sheridan Le Fanu, aliás Sheridan Le Fanu: Escritor irlandês - «Um cruel amor, um estranho amor teria tomado a minha vida. O amor tem os seus sacrifícios. Nenhum sacrifício sem sangue» (Carmilla - excerto). IMAG.405

VISTORiA

O Barco da Vida

Em breve vais estar morto e não vais saber que te afastas

deslizando no barco da vida até outras paragens

onde a manhã te espera em escondidas margens.

Não te preocupes. Não temas o momento de zarpar.

Uma mão benigna prepara tranquila as velas do barco

que te vai conduzir do país da noite ao do dia.

Caminha sem medo até ao silêncio da margem,

pelo trilho suave através da erva do ocaso.

Pär Lagerkvist (1940)

VISTORiA

Poetas Velhos

Bom dia, poetas velhos.
Me deixem na boca
o gosto dos versos
mais fortes que não farei.
Dia vai vir que os saiba
tão bem que vos cite
como quem tê-los
um tanto feito também,
acredite.

Paulo Leminski

O dono da Quinta de River Valley, Herbert William Clutter, de quarenta e oito anos de idade, considerava-se um indivíduo de perfeita saúde, como bem o provava um exame médico recente, feito por motivo da assinatura de um seguro de vida. Muito embora usasse óculos sem aros e fosse de estatura mediana (não chegava a atingir o metro e oitenta), Mr. Clutter era uma figura máscula. Tinha ombros largos, os cabelos conservavam a cor escura, o queixo era quadrado, a sua expressão confiante traduzia uma juventude saudável, e os dentes impecáveis ainda conseguiam partir nozes. Pesava à roda de sessenta e sete quilos, tal como nos tempos em que se formara em agricultura na Universidade do Estado de Kansas. Não se podia considerar tão rico como o homem mais rico de Holcomb, Mr. Taylor Jones, um lavrador seu vizinho. Era, no entanto, o cidadão mais conhecido e importante, tanto na sua terra, como em Garden City, a sede do condado vizinho onde fora chefe da Comissão Construtora da Primeira Igreja Metodista, edifício que custara oitocentos mil dólares. Ocupava quase sempre a presidência da Conferência das Organizações Agrícolas do Kansas, e o seu nome era conhecido e respeitado entre todos os agricultores do Médio Oeste, bem como em certas repartições de Washington, onde desempenhara o cargo de membro da Caixa Federal de Crédito Agrícola durante a administração de Eisenhower.

Mr. Clutter sabia sempre o que queria e, de um modo geral, acabava por o conseguir. Na mão esquerda, naquilo que restava de um dedo outrora decepado por uma máquina agrícola, usava, havia um quarto de século, uma simples aliança de ouro, símbolo do seu casamento com a pessoa que escolhera – irmã de um colega de curso, uma rapariga tímida, piedosa, delicada, chamada Bonnie Fox, mais nova do que ele três anos. Dera-lhe quatro filhos – três raparigas e um rapaz. A mais velha, Eveanna, casada e mãe de um garoto de dez meses, vivia ao norte de Ilinóis, mas vinha frequentes vezes a Holcomb. De facto, ela e a família eram esperadas ali dentro de duas semanas, pois no Dia da Acção de Graças estava projectada uma grande festa em casa da família Clutter (que tinha a sua origem na Alemanha; o primeiro emigrante chamado Clutter – ou Klotter, como então ele escrevia – chegara à América em 1880). Estavam convidadas cinquenta pessoas de várias partes, algumas até de longe, como Palatka, na Florida. Beverly, a irmã a seguir a Eveanna, também já não residia na quinta de River Valley, mas sim em Kansas City, onde estudava numa escola de enfermagem. Beverly estava noiva de um jovem estudante de biologia, de quem o pai muito gostava; os convites para o casamento, a realizar nas férias do Natal, encontravam-se já impressos. Portanto, viviam com os pais unicamente Kenyon, que aos quinze anos estava mais alto de que o pai, e a outra irmã, um ano mais velha, e que era a menina querida da terra: Nartcy.

Pelo que respeitava à família, Mr. Clutter só tinha uma preocupação – a saúde da mulher. Era «nervosa», sofria de pequenas «crises», segundo as expressões discretas usadas pelos seus amigos. Não que fosse segredo o mal que afligia a «pobre Bonnie»: todos sabiam que, durante a última meia dúzia de anos, ela andara sempre nas mãos dos psiquiatras. Mas até esta sombra ultimamente se dissipara um pouco. Na quarta-feira anterior, ao voltar de um internamento de duas semanas no Centro Médico Wesley, de Winchita, onde costumava ir repousar, Mrs. Clutter dera ao marido uma extraordinária notícia: informara-o, toda satisfeita, de que já sabia a causa dos seus padecimentos. Segundo o médico acabara de declarar, estes não provinham do cérebro, mas sim da espinha – tinham uma causa física, uma simples vértebra deslocada. Depois de operada, claro, voltaria a ser o que era dantes. Talvez a tensão nervosa, a mania de se isolar, as crises de choro abafadas na almofada, dentro do quarto, tudo aquilo fosse devido a um simples osso fora do sítio. Se isso era verdade, então o marido teria razões para se mostrar reconhecido a Deus, no Dia de Acção de Graças.

Truman Capote

- A Sangue Frio (excerto - 1966)

PARLATÓRiO

Eu tinha que alcançar o sucesso o mais rápido possível, as pessoas como eu sabem sempre o que querem. A maioria das pessoas passa metade da sua vida sem chegar a saber o que quer. Eu nunca pensei em trabalhar num escritório, nem nada parecido. Poderia ter sido bem-sucedido em qualquer coisa, mas sempre soube e quis ser escritor e tornar-me rico e famoso.

Truman Capote

BREVIÁRiO

ZON Lusomundo edita em Blu-ray, 2010 - O Ano do Contacto / The Year We Make Contact (1984) de Peter Hyams; com Roy Scheider e Helen Mirren. IMAG.103-479

Porto Editora lança Porto Nos Recantos do Passado de Germano Silva.

Antígona edita O Anão de Pär Lagerkvist (1891-1974); tradução de João Pedro de Andrade.

EXTRAORDINÁRiO

OS HUMANIMAIS - Folhetim Aperiódico

CARTA NA MÃO DOBRA O ENGUIÇO - 3

Salomão tinha, aliás, as suas tácticas, precárias.

Certa noite, o distinto facultativo Mathias Embirra deparou-se com um estranho lá em sua casa. Pediu socorro e acorreu a criada, Clotilde Mercez, que não era estranha a esse facto. O larápio tolhido, Salomão Emérito berrava ante o representante da autoridade, que o barrara com uma gazua a postos:

- Ora, aqui está a verdade da Carta Constitucional! Dizem que somos livres, e nem me consentem a minha indústria. Já uma pessoa não pode fazer uso do seu instrumento...

Simplicio Thiago, o agente policial, não tugiu nem mugiu. Estava tão só a olhá-lo naquele despropósito, por riba do bigode farfalhudo.

– Continua