domingo, dezembro 17, 2017

IMAGINÁRiO #419

José de Matos-Cruz | 16 Maio 2013 | Edição Kafre | Ano X – Semanal – Fundado em 2004


PRONTUÁRiO

FUTURISMO
Algures, no Século XX. O mais feroz e radical dos regimes políticos, subjugado por um opressivo e kafkiano aparelho administrativo, uma brutal organização policial secreta, uma sofisticada e fatídica burocracia. Contudo, para além dos extravagantes focos de resistência clandestina, é pela evasão onírica que Sam Lowry, um modesto funcionário, ousa reabilitar-se, no amor e na aventura, do seu alienante círculo de influências e servidão…Eis Brazil - O Outro Lado do Sonho (1985) de Terry Gilliam - uma saga futurista e testemunhadora, onírica e prodigiosa, inspirada no sucesso musical de Ary Barroso, com múltiplas sugestões sobre a banda sonora. Também argumentista, com Tom Stoppard e Charles McKeown, Gilliam busca as referências temáticas e expressionistas, míticas e emulativas, no romance 1984 (1949) de George Orwell, e no filme Metropolis (1926) de Fritz Lang, em prodigiosa transfiguração pela arquitectura visual, em paralelo a uma exacerbada e cáustica vertigem satírica. A profética denúncia da aberração totalitarista corresponde à feroz insolência do humor negro.

CALENDÁRiO

26JUL-01AGO2012 - Em Lisboa, no Cinema City Classic Alvalade, JumpCut apresenta Mostra de Filmes de Miguel Gonçalves Mendes; inclui séries, curtas, médias e longas metragens. IMAG.17-123-175-189-331

14OUT1933-29JUL2012 - Santos Manuel: Actor português de teatro, cinema e televisão, entre os fundadores da Casa da Comédia (1962) - «A primeira memória que guardamos de Santos Manuel é a voz. Quente, espessa, serena. Depois, um rosto dotado de uma secura algo inquietante» (Jorge Leitão Ramos - Dicionário do Cinema Português 1962-1988).

1925-31JUL2012 - Eugene Luther Gore Vidal: Escritor americano - «Estilo é sabermos quem realmente somos, conhecermos bem a mensagem que pretendemos transmitir, e não dar a mínima importância a tudo o resto». IMAG.192-315

02AGO2012 - Columbia TriStar Warner distribui O Cavaleiro das Trevas Renasce / The Dark Knight Rises de Christopher Nolan; sobre Batman, o herói em quadradinhos concebido por Bob Kane, com Christian Bale e Anne Hathaway.
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VISTORiA

A luz foi-se e, agora, nada mais resta, a não ser esperar por um novo sol, um novo dia, nascido do mistério do tempo e do amor que o homem tem pela luz…
Gore Vidal
- Juliano (1964 - excerto)
ANUÁRiO

1563 - Durante as guerras contra os turcos, as novidades publicam-se em Veneza por meio de Notizie Scritte, uma folha escrita à mão, a qual tomou depois o título de Gazzetta, designação derivada da moeda que se pagava pela sua leitura.

1863 - Neste ano, segundo o Relatório Geral do Serviço da Repartição de Saúde, existem em Portugal, no Reino e nas Ilhas: 262 médicos, 566 cirurgiões, 8 cirurgiões ministrantes, 2 algebristas, 771 farmacêuticos, 11 licenciados menores de saúde, 12 dentistas, 660 sangradores e 172 parteiras.

MEMÓRiA

1628-17MAI1703 - Charles Perrault: Ficcionista e poeta francês - «Vimos que os jovens, / Principalmente as moças, / Lindas, elegantes e educadas, / Fazem muito mal em escutar / Qualquer tipo de gente, / Assim, não será de estranhar / Que, por isso, o lobo as devore. / Eu digo o lobo porque todos os lobos / Não são do mesmo tipo. / Existe um que é manhoso / Macio, sem fel, sem furor. / Fazendo-se de íntimo, gentil e adulador, / Persegue as jovens moças / Até em suas casas e seus aposentos. / Atenção, porém! / As que não sabem / Que esses lobos melosos /De todos eles são os mais perigosos» (O Capuchinho Vermelho - Moral da História). IMAG.115-210

18MAI1773-1848 - Marquês de Maricá, aliás Mariano José Pereira da Fonseca: Filósofo, escritor e político brasileiro - «Os ingratos pensam minorar ou justificar a sua ingratidão, memorando com frequência os vícios e defeitos dos seus benfeitores».

VISTORiA

O Capuchinho Vermelho

Havia, numa cidadezinha, uma menina que todos achavam muito bonita. A mãe era doida por ela e a avó ainda mais. Por isso, a sua avó mandou fazer-lhe um pequeno capuz vermelho, que ficava muito bem à menina. Por causa dele, ela passou a ser chamada, por todos, o Capuchinho Vermelho.
Um dia em que a sua mãe preparara umas tortas, disse-lhe:
Vai ver como está a tua avó, pois soube que ela tem andado doente. Leva uma torta e um potezinho de manteiga.
O Capuchinho Vermelho foi visitar a sua avó, que morava noutra cidadezinha.
Quando atravessava o bosque, a menina encontrou o compadre Lobo, que logo sentiu vontade de a comer. Mas não teve coragem, por causa de uns lenhadores que estavam na floresta.
O Lobo perguntou-lhe aonde ia. A pobrezinha, que não sabia como é perigoso parar para escutar um Lobo, respondeu:
Vou ver minha avó e levar-lhe uma torta e um potezinho de manteiga, mandados pela minha mãe.
Ela mora muito longe? – questionou o Lobo.
Oh, sim! – exclamou o Capuchinho Vermelho. – É para lá daquele moinho que se vê ali bastante abaixo. É a primeira casa da cidadezinha.
Pois bem… – disse o Lobo, – Eu também quero ir ver a tua avó. Eu sigo por este caminho, e tu vais por aquele. Vamos ver quem chega lá primeiro.
O Lobo pôs-se a correr com força, pelo caminho mais curto. Enquanto a menina ia pelo caminho mais longo, distraindo-se a comer avelãs, correndo atrás das borboletas e fazendo ramalhetes com as florzinhas que encontrava...
Charles Perrault (excerto)

BREVIÁRiO

20th Century Fox edita em Blu-ray, Brazil - O Outro Lado do Sonho / Brazil (1985) de Terry Gilliam; com Jonathan Price e Robert De Niro. IMAG.8-62-166-384

Gradiva edita Tempo da Música, Música do Tempo de Eduardo Lourenço. IMAG.59-147-161-187-214-263-352

Distrijazz edita em CD, sob chancela Resonance, Echoes of Indiana Avenue pelo guitarrista Wes Montgomery (1925-1968).

Relógio D’Água edita Contos Escolhidos de Isaac Babel (1894-1940); tradução de Nailia Baldé.

INVENTÁRiO

A BATALHA DOS TRÊS REIS – ESTE SONO QUE NOS SONHA

A memória atrai-nos ao passado. No presente, confrontamos a história. A nostalgia perverte o futuro.
O tempo é um nexo elementar do enigma que nos compreende, a decifrar, e dos conflitos que temos para decidir. Não há parâmetros que definam a realidade, pois estamos envolvidos entre a existência e a identidade, divididos entre a expectativa, as renúncias, as vivências e a multiplicidade.
O apelo condiciona a procura. A melancolia determina a busca, em nós e pelo mundo.

Terras, raízes. Mares, vagas. Ao alto. Transformamo-nos com a viagem, tornando supérflua a inquitude quanto à perdição ou à salvação. Eis um povo contrastado pelas fracturas, cerzido pelos expedientes, devastado pelas perdas, colorido pelos lutos. Assistindo à nossa ausência, desde que partimos para o reencontro com nós próprios.
Em A Batalha dos Três Reis, Miguel Gonçalves Mendes evoca mitos e símbolos que nos forjaram, segue a original inevitabilidade de percorrermos utopias e quimeras, explora o luso verbo iniciático, enfrenta os fantasmas mutantes de nossos desvarios e martírios, que reinventa em virtuais sujeitos actuais – cúmplices ou incompletos, solitários ou suicidários – declinados pelas luzes e pelas trevas.
Do Desejado algures, ao desejo fatídico.
Aquele que não tinha pai, não tinha mãe – que pertencia à raça dos monstros...
Sagraram a mística e o império. Depois, sucumbiram ao ranço e ao escorbuto. O elmo e a alma, a arma e a cruz, o fausto e o esplendor, o hausto e a miséria.
Com um mistério insondável. Um padrão desconexo. Como um coração exposto.
A partir de Lisboa a magnífica, a cidade pobre e podre, hoje a precária sobrevivente, Miguel Gonçalves Mendes sublima o sangue de Sebastião na sede das areias, revolve o paroxismo d’África na vertigem espectral sobre um homem, uma mulher e outro homem, desvenda cada um de nós oculto nos caprichos de um deserto íntimo, sobre um exílio assumido e paradoxal.
Reunião, ruínas. David, fotógrafo, e o alcance dos flagrantes a reportar. Vasco e o tédio das palavras, sem nexo somadas ou sumidas em inscrições tumulares. O suspiro de Laura, roçando na arquitectura dos escombros.
Crises e tensões. A morte encoberta pela vida, o novelo da paixão enevoada pelo olhar. Visões, fusões. E corpórea, imaterial, a tela fílmica, macilenta – qual textura deteriorada da representação, refeita pela penumbra volátil do imaginário.
Transes, transições. Vestígios funestos. Nunca, sempre. Ninguém, nenhures. Sedução, perturbação. O fulgor celeste, a fúria humana. Pueril, solene. Expiação, impunidade. Desaires, desastres. Agonia, autofagia. Clamor, vitimação. Combater, sacrificar por uma causa que nos condene ou nos transcenda. Ontem como hoje.
Agonia, euforia, alegria, alegoria. Assim, somos – gente junta, dispersa, mansa, esparsa, volúvel, brutal. Insólita, plural. Implícita, furtiva. Obscura, reflectida. Distante, rendida. Distinta, dividida. Latente, inexorável. Saudosa, indiferente.
Diferente. De regresso. Somos assim. Ansiedade, exaustão. Querer, resistir, destruir. Qual quebranto nefasto. Assombrados, iluminados. Reverter e prolongar.
Tormentos. Sem alvorada. Assombrados, sonâmbulos. Habitar a incógnita épica, irradiar no crepúsculo – prodigioso, irreprimível, perene, visionário.
Os mesmos lugares, outras aparências. Outros desatinos, os mesmos destinos. Através da emergência documental, Miguel Gonçalves Mendes eiva A Batalha dos Três Reis de um testemunho lírico e onírico, trágico e pungente, sobre a peculiar insónia, a secular ficcionação de Portugal.

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